Considerados um dos grupos mais únicos saídos
do panorama metálico nacional, os Desire regressaram aos palcos para duas datas
especiais em celebração dos seus 20 anos de carreira. No fim do concerto do
Porto, conversámos com Tear e Flame sobre o passado, presente e futuro da
banda.
Depois de duas datas de celebração dos 20
anos de Desire, qual é o balanço que fazem deste retorno aos palcos?
Tear:
Um balanço extremamente satisfatório, porque foram duas grandes noites. Duas
noites únicas, tal como prevíamos e esperávamos. Penso que, da nossa parte,
conseguimos proporcionar isso da melhor forma a todos os que compareceram nos
concertos. Da nossa parte foi algo mesmo de muito, muito especial. Espero que
também o tenha sido para quem esteve presente nestas duas datas, porque, para
nós, foram os concertos mais especiais que demos em toda a nossa carreira. 20
anos de uma banda de metal em Portugal não é fácil… não é mesmo nada fácil,
ainda para mais num estilo um tanto ou quanto mal tratado em Portugal.
Há uns meses atrás, entrevistei o John
Paradiso, dos Evoken. Perguntei-lhe quando vinham a Portugal e ele respondeu que
gostaria muito de regressar e, acima de tudo, voltar a ter a oportunidade de
tocar com os Desire. O que sentem perante estas palavras?
Tear:
Em 2003, quando tivemos a oportunidade de fazer uma digressão com os Evoken e
os Officium Triste, eles (os Evoken) confidenciaram-nos que, desde que ouviram
o “Infinity…”, o nosso primeiro trabalho, nos tornámos uma banda de referência
para eles e uma forte inspiração no som que fazem. Obviamente que, na altura,
isso nos deixou bastante satisfeitos e orgulhos. Foi extremamente gratificante
saber que uma banda dos E.U.A., que vagueia pelos mesmos meandros musicais que
os Desire, nos tinha como referência. Também ansiamos pelo dia em que eles
regressem para voltarmos a estar juntos em palco. Não só com eles, mas também
recordar os tempos com os Officium Triste. Toda essa digressão foi extremamente
positiva e gratificante…
Flame:
Houve um grande espírito de camaradagem e as recordações que temos são as
melhores. Parece que os Evoken têm a mesma opinião e, por isso, seria muito bom
partilhar um palco ou uma tournée com essas duas bandas.
Qual é o balanço que fazem destes 20 anos?
Qual é o balanço que fazem destes 20 anos?
Tear:
Tivemos alguns momentos complicados. Talvez tenham sido mais os momentos
complicados do que os momentos bons. Foram 20 anos difíceis, muito atribulados,
com várias entradas e saídas de membros, problemas pessoais à mistura…
Felizmente, ao fim destes anos todos, conseguimos o mais importante, que foi
manter a personalidade e a identidade da banda. Penso que isso se conseguiu
muito graças ao facto de a espinha dorsal da banda se ter mantido junta ao
longo deste tempo todo. Refiro-me a mim próprio, ao Flame e ao Mist, que somos
os três elementos que permanecem desde o início. Todos os outros, infelizmente,
foram saindo e foram entrando. Isso deveu-se a problemas pessoais, a
incompatibilidades entre a vida pessoal e a vida da banda… Nos Desire, desde o início que sempre
tivemos esta mentalidade e filosofia: as pessoas não integram a banda
simplesmente pela sua capacidade técnica, mas essencialmente pelo seu espírito,
feeling, entrega e pela forma como se identificam e reconhecem no som da banda.
Como costumo dizer, Desire não é uma banda vulgar, não é uma banda feita de
factos e detalhes triviais, mas sim uma banda especial. Pode não ser uma banda
grande, mas é de certeza, e eu tenho essa convicção, que é uma grande banda.
Lembro-me de falar com o Hrödulf, dos Azagatel, e ele dizer que a mudança constante de membros é uma das piores coisas que pode acontecer a uma banda, porque torna as coisas muito complicadas ao teres que estar constantemente a lidar com pessoas diferentes. E a única forma de contornar esse problema era através de muita perseverança e um amor genuíno. Este parece ser um problema da cena nacional. Concordam?
Flame:
Quando as pessoas abraçam um projeto, tem mesmo que ser de corpo e alma. Não
pode ser abraçado como um passatempo ou como um hobbie. Todos nós passámos por
uma idade onde era "cool" ter uma banda e, muitas vezes, essas mudanças de
formação acabam por se refletir, porque as pessoas passado algum tempo começam
a ver que não têm andamento para isto, que não é isto que realmente querem
fazer das suas vidas e acabam por sobrepor outros interesses aos da banda. Isso
resulta na constante troca de membros. É muito difícil encontrar pessoas que
estejam todas vocacionadas para o mesmo estilo, principalmente no nosso caso,
que temos um som muito específico. É fácil encontrar guitarristas e bateristas
de Thrash Metal. É conforme as “ondas” do metal, em geral.
Consideram que estas alterações na formação
contribuíram para que os Desire tenham lançado apenas quatro trabalhos em 20
anos de carreira?
Tear:
Sem dúvida. Se recuarmos no tempo, obviamente que hoje em dia falta um ou outro
elemento e, mesmo assim, consegues fazer as coisas. Até a própria gravação de
um disco se tornou muito mais fácil com a chegada da era digital. Na altura, e
estamos a falar desde 1992, quando ainda se trocavam cassetes e a Internet
ainda não era utilizada de forma massiva, tudo era mais rudimentar, mais
caseiro, mais arcaico. Tudo era mais…
Flame:
Por um lado, mais genuíno e mais verdadeiro até.
Tear:
Hoje em dia, talvez a ausência de um membro já seja não tão preponderante para
que a banda não possa avançar com a gravação do disco. Quando falo nisto,
também quero dizer que antigamente, quando faltava um membro, isso trazia não só
consequências nível de formação, mas também a nível monetário. Todos nós fazíamos
contas para fazer a gravação e faltar uma pessoa já era um arrombo enorme nas
finanças de uma banda. Atualmente, isso já não tem um impacto tão grande e a
verdade é que estes 20 anos nos deram um know-how, uma confiança e uma
capacidade maiores para fazer coisas que não conseguimos anteriormente.
O vosso último trabalho foi editado em 2009. Sei que já começaram a trabalhar em material novo. Para quando um novo disco dos Desire?
O vosso último trabalho foi editado em 2009. Sei que já começaram a trabalhar em material novo. Para quando um novo disco dos Desire?
Tear:
Estamos a fazer todos os possíveis para que consigamos, no máximo, em Março do
próximo ano começar a gravar o novo disco para que seja editado no Outono de
2013. Para nós, seria interessante conseguir fazê-lo mais cedo, mas não
queremos estar a criar falsas expetativas, nem estar a defraudar as próprias
expetativas das pessoas. Vamos participar no próximo ano, em Maio, no dia 11,
num festival na Holanda. Vamos querer aproveitar a oportunidade para fazer
outras datas, como fizemos em 2003. Seria bastante proveitoso para nós se já
levássemos um novo disco na bagagem, mas estamos a ver que essa meta poderá ser
algo complicada de atingir. Daí sermos um bocado realistas, sempre o fomos, e
as pessoas perceberem essa parte do porquê de não editarmos trabalhos de forma
mais regular. Sempre fomos pessoas muito responsáveis e ponderadas. Sempre
pensámos nas coisas com o máximo de concentração e com a certeza absoluta que
estávamos a fazer exatamente aquilo que queríamos fazer.
Flame:
Tem que ser um digno sucessor, senão não vale a pena.
Tear:
Levamos bastante tempo a compor, não porque tenhamos dificuldade em criar novas
músicas, mas porque nem sempre nos conseguimos rever nessas músicas, nem
exprimir na plenitude tudo o que queremos transmitir. Damos imensas voltas nas
coisas para que elas fiquem exatamente como queremos.
Flame:
Algo que resume o que o Tear está a dizer é que, acima de tudo, somos nós os
nossos maiores críticos. Nem tudo aquilo que sai na sala de ensaios é visto
como terminado Só avançamos quando estamos realmente satisfeitos. Relativamente
ao próximo trabalho, neste momento temos cerca de 70% do material pronto. Os
restantes 30% são aqueles pormenores que precisamos para ficar completamente
satisfeitos.
Notou-se que deram muita atenção ao “Infinity…” nesta celebração. É um álbum muito especial não só por ser marcante para a cena portuguesa, mas também por ser visto como uma peça de coleção em todo o mundo. Como é para vocês ter um trabalho como este na vossa discografia?
Tear:
Penso que o “Infinity…” acabou por conquistar aquilo que lhe era naturalmente
devido, porque foi o primeiro disco de Doom Metal em Portugal. Fomos pioneiro e
penso que foi uma viragem no Metal em Portugal. Daí que nos primeiros tempos
não tenha sido muito bem aceite, mas também sabíamos que seria difícil digerir.
Porém, tínhamos a convicção que, quando as pessoas percebessem exatamente o que
os Desire queriam transmitir, se iria tornar numa referência para os ouvintes,
assim como para muitas bandas que viessem a surgir depois. Foi um disco que nos
marcou imenso, éramos muito jovens na altura. Estávamos cheios de energia e
ideias. Não quisemos partilhar o disco com ninguém, ou seja, não quisemos
envolver ninguém na sua composição e elaboração. Foi um trabalho bastante
ambicioso e puro. Todos os trabalhos de Desire têm um significado muito
especial, porque todos eles marcam uma fase das nossas vidas, dos nossos
sentimentos e das nossas intenções. Hoje estamos a falar do “Infinity…” e,
sinceramente, acredito que, com o passar dos anos, o “Pentacrow” e o “Locus
Horrendus” também vão conquistar o seu lugar. Pessoalmente, penso que o “Locus
Horrendus” é o disco que traduz de melhor forma a verdadeira essência e
identidade dos Desire. É a pérola negra da banda, porque é o disco mais
sinistro, mórbido, sentido, profundo e introspetivo de sempre. Está ligado a
emoções muito fortes.
Há planos para uma reedição do “Infinity…”?
Tear: Há planos para uma
reedição tanto do “Infinity…”, como do “Pentacrow” e do “Locus Horrendus”.
Falou-se inicialmente de uma box set…
Tear: Sim, a “The Trilogy of
Melancholy”. Posso adiantar que isso ainda não
foi feito por duas grandes razões. Uma, que é a mais importante de todas, por
ainda estarmos a resolver pequenas questões com a Skyfall Records, a editora
que lançou o “Infinity…” e o “Pentacrow”. A outra é o facto de querermos
terminar, e isto é uma convicção e desejo pessoal, o conceito que iniciámos no
“Infinity…”, que é, no fundo, transversal a todos os trabalhos dos Desire. Há
três grandes trabalhos que marcam esse conceito, que são o “Infinity…”, o
“Locus Horrendus” e a terceira parte que ainda está para sair, ou seja, o próximo
álbum. Aí, sim, penso que será a altura ideal para lançar a “The Trilogy of
Melancholy” com esses três discos, deixando os dois EPs de lado. E, como já
devem ter reparado, há outra característica especial na banda que faço questão
de manter. Todos os discos de Desire têm um subtítulo comprido e procuramos
sempre fazer trocadilhos nos títulos dos EPs com aquilo que mais nos marca e
simboliza, ou seja, a figura do corvo. Tanto o “Pentacrow” como o “Crowcifix”
são muito focados na figura do corvo, porque são trabalhos mais exclusivos,
mais focados nos fãs e não tanto no público em geral. Daí até termos editado o
“Crowcifix” em vinil, porque, ao longo dos anos, fomos recebendo vários
incentivos para que isso acontecesse. Isso para nós fez todo o sentido, porque
pertencemos ao underground e nunca tínhamos editado um vinil. Teve que ser em
’12, porque não cabia noutro formato. (risos) Às vezes, as pessoas pensam que
escrevemos temas longos de propósito, mas não é verdade. Isso acontece, porque…
Flame: Não conseguimos
transmitir certos estados de espírito e ambiências em apenas cinco ou dez
minutos.
Já que falam nisso, voltemos a falar sobre o concerto.
É incrível como os Desire conseguem transformar um concerto de 1h45 em algo que
parece tão curto. Para isso contribui a forma como vocês deixam as vossas
músicas respirar.
Flame: Tocámos 1h45 e ainda nos
disseram que soube a pouco.
Tear: Sim, é isso mesmo que
estás a dizer e isso reflete-se na música.
Flame: E ainda bem que as
pessoas reconhecem isso, que não se torna maçador pelas música serem grandes e
por haver vários estados de espírito e ambiências…
Tear: Por acaso, esse foi um
dos nossos grandes receios quando estávamos a preparar estes concertos. Ficámos
com o receio de ser um alinhamento demasiado longo e maçador. Pensámos até em
reduzi-lo quando estávamos na sala de ensaios. Daí termos feito o encore, para ver
se as pessoas tinham realmente vontade de ouvir mais. Confesso que, nestes dois
concertos, saímos sempre do palco com a certeza de que as pessoas queriam que
voltássemos. É óbvio que isso nos deixa
extremamente satisfeitos e é algo muito gratificante. Estas são, sem dúvida,
duas noites que ficarão nas nossas memórias e espero que também fiquem na
memória de todos os que estiveram presentes nestes dois concertos. Foram
especiais e únicos, tal como esperámos. Há imenso tempo que não tocávamos um
alinhamento tão longo…
Flame: E em nome próprio.
Tear: É uma pena que não tenham
comparecido mais pessoas, mas, mesmo assim, penso que o balanço é extremamente
positivo. São conquistas que se fazem passo a passo.
Flame: Só fez falta quem cá
esteve, como se costuma dizer. Quem queria estar, esteve num dos espetáculos e
só perdeu quem não esteve.
Tear: Fiquei feliz pelo carinho
que tivemos das pessoas no final dos concertos e por tudo o que nos
transmitiram. Tudo isto, parecendo que não, vai-nos alimentando a alma e o ego.
Não no sentido de acharmos que somos bons, mas para nos dar forças para
continuar…
Flame: E nos fazer sentir que
estes 20 anos têm valido a pena. Nunca imaginámos que ainda estaríamos no ativo
passado tanto tempo, especialmente em Portugal. Já muitas pessoas nos disseram
que o nosso azar foi os Desire terem nascido em Portugal e que, se tivesse sido
noutro país, talvez tivéssemos mais reconhecimento. Nós reconhecemos isso,
achamos que isso seja possível, mas temos dado sempre o nosso melhor.
Tear: Fica um amargo na boca
por não termos feito mais e chegado mais além…
Pelo menos, sentem-se realizados com o que fizeram até
agora. Muitas bandas não o podem dizer.
Flame: Sem dúvida, principalmente
por nunca termos feito nada forçado e que soasse falso. O que já saiu é algo
que vem de dentro. Ouvimos constantemente pessoas a perguntarem o porquê de
demorarmos tanto tempo a lançar um álbum, mas ele só sai quando achamos que
deve sair. Com todas as dificuldades que tivemos, podíamos ter optado por
encerrar atividades, mas sempre acreditámos com a mesma crença que tínhamos há
20 anos quando formámos a banda.
Tear: Só queria referir algo
que penso não ser muito comum em Portugal, infelizmente. Nestes dois concertos
fomos acarinhados e abraçados com a presença de várias pessoas que vieram de
propósito do estrangeiro para estarem presentes nesta celebração dos 20 anos de
Desire. Pessoal da Alemanha, Rússia, França, Inglaterra... Fazer isto com uma
banda portuguesa que, no nosso caso não tem muita exposição ou promoção
internacional, espelha o que os Desire conseguiram ao longo destes anos. Não só
fazer parte da vida de muitas pessoas em Portugal, como também no estrangeiro.
Recebemos constantemente incentivos e convites de muitas pessoas lá fora para
que levemos a música dos Desire aos palcos espalhados pelo mundo. Infelizmente,
como é do conhecimento geral, não é fácil concretizar essas coisas, mas
sentimos que temos fãs espalhados por todo o mundo. Faltam-nos as infraestruturas
e o apoio para podermos chegar mais além. Gostávamos de correr o mundo e
proporcionar a essas pessoas a hipótese de assistirem a um concerto nosso, até
porque foi por causa dos nossos fãs que não desistimos. Ainda temos muito para
dar e para contar em termos de conceito lírico. Penso que é uma história
interessante e faço votos para que, um dia, talvez quando a banda terminar,
todo este trabalho seja aproveitado para um argumento de filme. A banda-sonora
já está feita, só falta mesmo retratar tudo isto em imagem. Penso que
resultaria em algo profundo e muito bonito, por isso fica a deixa.
Para terminar, tinham planeado gravar estes dois
concertos e vi algumas câmaras na sala…
Tear: Houve pessoas que se
ofereceram para fazer a captação de vídeo.
Flame: Mas nada oficial.
Tear: O objetivo era fazê-lo de
forma profissional, com várias câmaras e ângulos, para depois podermos fazer
uma mistura. Fazer também uma captação de som profissional, porque a intenção
era lançar em 2013 um DVD alusivo a estes 20 anos. Não foi possível, mas esse
sonho não fica enterrado. Hoje foram estes concertos e, se calhar, daqui a uns
anos teremos melhores condições e talvez aí já seja possível tornar esta ideia
uma realidade. É algo que se impõe a uma banda como Desire e as pessoas merecem
isso. Seria bom poder estar em casa, num momento introspetivo, e sentir um
concerto nosso.
Entrevista realizada em colaboração com o Tiago Moreira para a Infektion Magazine.
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